17 de abr. de 2024

O RE/TOQUE DO ZIRALDO

 


     Na noite em que Rosário Fusco morreu em Cataguases, 17.08.77, falei com Ziraldo pelo telefone e combinamos que eu faria um artigo pro Pasquim. O texto saiu uma semana depois, e de certa forma complementava a longa entrevista que Joaquim Branco e eu fizemos com o romancista cerca de um ano antes – e que o Pasquim publicaria em março de 1976.
      Assim eu iniciava um longo texto quando da morte de meu amigo, o romancista Rosário Fusco. Num tempo sem computador, internet e essas modernidades de agora, lembro que levei os originais da entrevista diretamente para a casa do Ziraldo – e, a tiracolo, minha mulher à época, Adriana Montheiro, que acabara de fazer um ensaio fotográfico com Fusco. Ziraldo deu uma rápida olhada no texto, deixando entrever sucessivos sorrisos de aprovação: “isso está ótimo, Fusco é impagável! Vai dar ótima matéria, com certeza!”.
     Foi quando passei pra ele as fotos da Adriana. Ziraldo, olhou, olhou de novo e voltou a olhar, admirado: “A entrevista está ótima, mas com umas fotos dessas não precisa nem de texto, elas falam por si. São fotos que conseguem captar com precisão o ser formidável que é Rosário Fusco”. O olhar de Ziraldo era o do grande artista gráfico que sempre foi – e sacou na hora o potencial daquelas fotos que acabaram enriquecendo a entrevista, que ocupou mais de 10 páginas do Pasquim.

Aberto para obras



      Corta para um dia de 1991, quando minha amiga, a arquiteta Tânia Horta, me trouxe os originais de um livro de poemas, “Coração Fechado para Obras”, que queria publicar. Disse pra Tania procurar o seu primo Ziraldo: quem sabe ele não faria a capa? Talvez a Olga Savary pudesse fazer um prefácio, que ela era expert em escrever prefácios. E passei pra ela também o contato do Massao Ohno, em São Paulo, que editava uns livros muito bem cuidados graficamente. Acabou que eu escrevi um pequeno texto para a orelha do livro, enquanto Tânia aguardava o prefácio da Olga. Ela falou com o Ziraldo, que pediu para ver os originais do livro.
       Tânia e eu levamos os originais para sua casa na rua Baronesa de Poconé, na Lagoa, cuja porta era guardada por aquele poster imenso do Super Homem. Ziraldo nos recebeu em seu estúdio com o sorriso de sempre, nos abraçou e começou a manusear atentamente o livro. “Ótimo titulo, Tânia, ótimo título”. Ele estava na prancheta e passou a escrever várias vezes aquele “Coração Fechado para Obras” com sua caligrafia característica. Eu disse pra ele que falara com a Tânia pra mandar o livro pro Massao em São Paulo.
     Sem nos olhar, e continuando a rabiscar o titulo sem parar, Ziraldo nos disse: “Sim, aquele japonesinho é maluco, mas faz um ótimo trabalho, tem todo um cuidado gráfico, produz belos livros, principalmente de poemas”. Percebemos que o papo findara ali, pois ele já estava focado no fazer da capa. Ziraldo disse que assim que tivesse alguma coisa falava com a Tânia.
       E assim foi. Dias depois ele ligou: a capa estava pronta. Lá fomos nós, Tânia e eu, de novo pra Baronesa de Poconé. Sentado na prancheta, Ziraldo nos mostrou a capa que fizera: tudo muito sóbrio, o fundo branco com lettering em preto. Aquele “lettering-Ziraldo”, inconfundível, as letras maiúsculas de sempre, sua marca e assinatura, E, no caso, vazando por toda a capa e contracapa, tudo muito ousado, as letras garrafais ocupando capa e contracapa.
     De repente, ele toma de novo a capa que estávamos olhando, pega um lápis de cor e dá o re/toque de gênio: preenche de vermelho o vazio dos dois “o” da palavra coração. Tânia e eu vimos ali, naquele momento, o layout da capa, que já era ótimo, tornar-se soberbo. Touché!


Elisa e o elefante

      Era um final de tarde qualquer de 1993, o carro correndo lento em meio ao trânsito tumultuado do Leblon. No banco de trás, Vilma, a mulher do Ziraldo; Fernanda, sua secretária; e Tânia Horta, à época já minha namorada. Eu estava na direção e tinha ao meu lado, ninguém menos que o Ziraldo. Convidado por Sérgio Cabral, o pai, Ziraldo ia todo serelepe para tomar posse na Academia da Cachaça, na rua Conde Bernadotte.
     Foi quando a Tânia pediu para eu contar “aquela história” da Elisa Lucinda. Foi assim: Elisa e eu nos conhecemos numa noitada carioca num bar da Pacheco Leão, no Jardim Botânico, o Botanic – refúgio de poetas de vários quilates, que ali se apresentavam, falavam seus poemas e falavam, falavam.
         E foi lá e ainda lá que vi Elisa Lucinda pela primeira vez, falando com grande verve um de seus enormes poemas. Fiquei fascinado com aquilo tudo, a mulata, os verdes olhos, a voz rouca, o soar de seu poema-espanto. Também eu falara antes alguns de meus poemas. Terminada sua apresentação, Elisa sentou-se em minha mesa. Mal chegamos a ser apresentados e logo elogiei sua bela performance. Ela devolveu os elogios, dizendo que também gostara de meus poemas. E adiantou: “Quem sabe a gente não se reúne e faz uma apresentação juntos?”. Eu disse que sim, que era uma boa ideia. Quem sabe ela não iria lá em casa pra gente ensaiar?
      Elisa ficou séria: “Ah, Ronaldo, não vou na sua casa, não”. “Mas, Elisa, por que não?”. Ela então mandou essa: “Não vou não, porque você vai querer me comer”. Surpreso, eu disse: “O que é isso, Elisa?”. Aí, ela soltou aquele sorriso de quem me pegara pelo pé: “Ah, não? Você não vai querer me comer? Então é que não vou mesmo. O que vou fazer lá, se você não vai me comer?”. Pano rápido, com muitas risadas.
      Muitas e muitas risadas dentro carro em que estávamos, Ziraldo quase gargalhando. Foi quando ouvimos a voz da Fernanda (que era muito surda): “Ziraldo, conta aquela do elefante!”. As risadas aumentaram altissonantes que só elas. Ao nos ver rindo, Fernanda achou que estivéssemos contando alguma piada. Chegamos ainda rindo à Academia da Cachaça: Ziraldo, pelo que me lembro, bebia pouco, quase nada. Eu, “modestamente” estava numa fase não–etílica. Então, pelo menos para nós, aquela foi uma noitada de Coca. Cola, seus malvados!

Com carinho, please!


Elisa Lucinda no meu colo: “Com carinho, please!

    O namoro com a Tânia acabou. “Pasarán más mil años, muchos de más/ Yo no sé si tenga amor la eternidad”, como no bolero famoso de Luis Miguel. Fiquei sem ver o Ziraldo por uma eternidade. Até que um dia qualquer da primeira década deste século nós nos encontramos na inauguração de um bar, quase casa de shows, ou coisa que o valha, na rua do Lavradio. Local especializado – vejam só a sina dos não-bebuns – em cachaça, a própria. Bar de mineiro, claro, do Plinio Fróes, também dono do Rio Scenarium, quase em frente. Eu fui a convite de minha amiga, a cantora lírica Maria Lúcia Godoy, que seria homenageada. Mal chegamos, demos com o Ziraldo, encostado no balcão, conversando com o Plínio.

   Nem deu tempo de nos cumprimentarmos, pois Ziraldo logo lançou de lá: “E aí, comeu?”. Na hora mal me lembrei da Elisa Lucinda, mas logo dei uma risada e disse pra ele: “Qual o quê, sô! Ela anda sempre lá em casa, viramos bons amigos, mas não rolou nada”. Não sei se ele acreditou, ma è vero! Elisa e eu ficamos bons amigos para sempre, embora hoje pouco nos vemos, eu aqui em cá/tá e ela lá no Rio. A última vez que nos encontramos foi numa Flip de Paraty, 2014. Elisa lançava seu livro “Fernando Pessoa, O Cavaleiro do Nada”.

           Foi uma festa, não só literária. Ela me deu o livro com a dedicatória: “Ronaldo, querido, saudades da sopa e das noitadas no Nogueira”. O Nogueira, no Baixo Copa, foi meu bar-escritório por vários anos-madrugadas. Tenho saudades da inacreditável Elisa, seus insights, sua alegria. Ah, sim: essa foto que está aí em cima. Aconteceu também durante outro lançamento, mas de um de meus livros no Rio, 2005. Elisa chegou e abafou de uma sentada só. Literalmente: sentada no meu colo, como quem não quer nada, para espanto do (in)distinto público, pede meu autógrafo: “Com carinho, please!”


E a do elefante?


     Na tarde do sábado em que Ziraldo morreu no Rio, 06.04.2024, soube pelo Joaqum Branco. “Puxa, até o Ziraldo, eu disse, logo ele que eu julgava o único realmente imortal de todos nós”. Numa entrevista de poucos anos atrás ao Canal Arte1, Ziraldo – com a mesma voz rouca, mas agora meio sumida, às vezes meio esquecido, titubeando, ainda era capaz de citar Einstein. Estava ali um Ziraldo de fala lenta, atravessado pela doença, a fala que falha: seus perrengues, suas ziquiziras, sua malasorte. Um Ziraldo capaz de trocar até a data do AI-5, quando ele e a turma do Pasquim foram presos. “Era novembro de 1968”. Não, Ziraldo, foi em dezembro, 13. Et pour cause.
      Mas, como disse, conseguiu citar Einstein: “a imaginação é mais importante que o conhecimento”. Imaginação e criatividade que assomaram em sua vida como se para sempre. Pois é, Ziraldo se foi com o seu talento, sua enorme imaginação e nos deixou sem saber como era aquela piada do elefante. Pô, Ziraldo, logo a do elefante, cara?

15 de abr. de 2024

Affonso Romano sobre RW: O mundo é macio e perigoso.

 


 Neste cinepoema, a poesia vive uma odisseia no espaço. Selva Selvaggia” não é o título de mais um livro de poesias, mas sim o nome de um cine-poema. O roteirista e diretor extraiu o argumento desta edição de fatos vivenciados por ele mesmo no eixo Minas-Bahia-Rio, entre 1962-1975, e de “outros lidos, vistos, consumidos – pelo telstar, pela tv, pelo cinematógrafo”.

Para Glauber Rocha, um filme não é arquitetura de efeitos, mas expressão visual de problemas. Talvez esteja nestas palavras de Glauber a explicação para a proposta poética de Ronaldo, que sem dúvida alguma suou e sofreu para compor seu poema – “na rua, na cama, no teclado da máquina, subitamente dentro de um cinema”. Com uma primeira montagem de Selva Selvaggia (com 66 takes de certa forma mantidos ou reestruturados nesta montagem atual), o autor foi premiado em 1970 pela União Brasileira de Escritores.

Teve outras premiações na primeira promoção de poesia na Guanabara, no primeiro e segundo festival de poesia de Pirapora (neste último recebeu o prêmio “Carlos Drummond de Andrade”). Ronaldo Werneck é um poeta amadurecido em barris de carvalho. Seu poema é uma dose dupla de batida de limão misturada com muitos copos de cerveja, duas vodcas e vários uísques.

A quem brinda? A Oswald de Andrade, Fellini, Mallarmé, Jorge de Lima, Mário Faustino, João Cabral, Maiakóvski, Camões, e.e. cummings e muitos outros. O que brinda o poeta? A palavra e o homem. Em Selva Selvaggia, o leitor-espectador encontrará dez seqncias, e a primeira abre a cena com o poeta refletindo sobre seu ofício: procurando estruturar os elementos necessários para a cine-viagem, através das palavras, imagens, espaços em branco. 

Vejamos o poema “Três haicais à la carte”: 1) os brancos impressos/ entre as letras são tetas/ leite submerso. 2) pedra sal e sonho/ apreender com o corpo/ sol cotidiano. 3) do amor não a/ prendeu a tonalidade/ar e amar´elo”. 

Notam-se influências joycenas – pelas associações sonoras – e de cummings – pela desintegração das palavras. Infelizmente não posso reproduzir aqui os melhores exemplos de total libertação, como acontece nos poemas Telstar, 2001 o espaço poético, Canção da espera”, “Réu´p”, Full-time”, “Pranto-socorro” e outros em que as palavras se agrupam coerentemente e se estruturam formando mosaicos visuais e fragmentos sonoros.

O poeta encerra a seqncia cinco com o poema-processo Pop/lar um poema eletrodoméstico social, em que aparece uma página de jornal anunciando uma liquidação de geladeiras, aparelhos de tv, liquidificadores, fogões, bicicletas, enceradeiras. Na mesma página, a notícia – “O mundo é macio e perigoso” – é o título do poema-texto, que tem como ilustrações fotografias de pessoas rindo e correndo de felicidade. Neste poema-texto Ronaldo mostra em versos como vê a realidade social deste mundo macio e perigoso. – “Uma canção de espera/ uma canção de esperança/ ancião/ ânsia/ canção/ anunciação/ retribuição/ risos/ grunhidos/ febre/ vômito/ de esperança/ é o mundo/ que te anuncio”.

Num total de 86 poemas, Selva Selvaggia é um desabafo de seu autor, refletido em uma boa dose de sentimentalismo poético, misturado com muita poesia concreta e alguns poemas-processo.


Affonso Romano de Santana

Revista Veja, São Paulo, maio de 1976

 


26 de mar. de 2024

FERLINGHETTI & CITY LIGHTS


 

Ulla me liga da Califórnia: “Papi, estou em San Francisco. O que você quer daqui?”.  “De San Francisco? Bem, querida, vamos dizer... uma foto sua com a Golden Gate Bridge ao fundo. Você bem sabe como o papai adora pontes: a Ponte Velha daqui, sobre o Pomba; a Ponte Vecchio sobre o Arno em Florença; as do Porto sobre o Douro em Portugal; e até a do poeta Sá-Carneiro, aquele “qualquer coisa de intermédio”, aquele “pilar da ponte do tédio”. 



“De San Francisco?” – volto a repetir. “Fora a Golden Gate, não deixe de visitar a livraria fundada por Lawrence Ferlinghetti, um de meus poetas preferidos, a City Lights Books”. No outro dia, Ulla de novo: “Papi, estou na City Lights, maravilhada, que bela livraria! Praticamente um andar só de poesia (vejam acima o vídeo que Ulla fez na livraria). Qual livro do Ferlinghetti você quer de presente?” – Algum de seus livros de poemas, Ulla. Menos A Coney Island of the Mind, que já li e tresli.

     Autêntica MP, de um só jato (palavra certa) Ulla deixa San Francisco e já está no Canadá. MP? Sim, “Mala Pronta”, pois ela curte mesmo é viajar, que nem nossa prima Regina – essa sim, a reconhecida e internacional rainha das MPs. E logo Ulla me liga do Panamá. “Do Panamá? Mas o que você está fazendo aí, minha filha?” “Meu voo de volta faria uma conexão aqui, mas houve um problema e vou ter que dormir no Panamá, pois só voo amanhã.  O que você quer do Panamá, papi?” Brinquei com ela: “Vai ver o Canal, e já que não há ponte à vista me traga um chapéu, pois ninguém sai daí sem trazer um dos famosos chapéus do Panamá. 


Dias depois, meus filhos Ulla e Pablo e minha nora Juliana chegam para o fim de semana aqui no Shangrilá. Surpresa: Ulla não só me trouxe dois livros de Ferlinghetti como um Panamá autêntico, um chapéu impecável: um sombrero de alta calidad.  Pra ninguém botar defeito.  Chapéu na cuca, Ferlinghetti nas mãos, começo a folhear os livros que me presenteou: A Far Rockaway of the Heart e Ferlinghetti a Life, uma edição ampliada de sua biografia, por  Neeli Cherkovski. 

Na verdade, já li e tenho ainda hoje a edição bilíngue da Mondadori (inglês-italiano, 2000) de A Far Rockaway of the Heart/ Un luna park del cuore – que comprei em Roma, em 2006, e foi tema de uma crônica que está em meu livro “Há Controvérsias 2”, de 2009, republicada em 2021 por ocasião da morte do poeta em  22 de fevereiro de 2021, aos 101 anos. Vejam link para essa crônica, que está aqui em meu blog, ao final deste texto. 

Ali, eu me arrisco até mesmo a traduzir um dos poemas de que mais gosto, exatamente o de abertura do livro: Everything changes and nothing changes/ Centuries end/ and all goes on/ as if nothing ever ends. “Tudo muda e nada muda/ séculos findam/ tudo continua/ como se nada findasse”. Que no italiano do livro que eu trouxe de Roma resultou em Tutto cambia e niente cambia/ Finiscono secoli/ e tutto continua/ come nulla finisse. 

Poema que desde aquela primeira leitura romana me lembrou o Eliot de “East Coker”: In my beginning is my end. Now the light falls./ You say I am repeating/ something I have said before. I shall said it again./ In my beginning is my end. Now the light falls. Palavras que também não sei bem o porquê me levam àquele Caetano Veloso de “Tudo ainda é tal e qual/ e, no entanto, nada igual”. 

Aliás, Eliot era um dos muitos poetas “do coração’ de Ferlinghetti, como diz seu biógrafo Cherkovski, a páginas tantas do livro que a Ulla me trouxe – que leio numa rápida passada e que repasso a vocês nessa tradução apressada: “Para sua tese La Cité: Symbole dans la poesie moderne: À la recherche d´une Tradition Metropolitaine (“The City as a Symbol in Modern Poetry: In Search of a Metropolitain Tradition”), Ferlinghetti leu centenas de textos, concentrando-se em T.S. Eliot (The Waste Land), no Hart Crane de The Bridge, no poema de Maiakovski sobre a Ponte do Brooklyn, em García Lorca (The Poet in New York), no Whtman de Leaves of Grass.”.

Ferlinghetti escreveu essa sua tese quando morou por um tempo em Paris. Foi nos anos 1940, e em Montparnasse, a alguns quarteirões do Boulevard St. Germain, que chamava de “terra de Hemingway”, onde frequentava o Café Dôme, um dos preferidos do romancista. 

Face a seu profundo interesse por Ezra Pound e Eliot, além de outros poetas americanos (e aqui acrescento Allen Ginsberg, de quem lançou em 1957 a primeira edição de seu famoso poema Howl/ “O Uivo”), além de vários poetas da beat generation, Ferlinghetti pesquisou sobre poesia em praticamente toda a literatura mundial, não somente para sua tese, mas também para subsidiar seu próprio desenvolvimento como poeta.  

Um poeta com a força de versos como os que traduzi na abertura de seu A far Rockaway of Mind que a Ulla me trouxe e que releio agora aqui no Shangrilá, sob a sombra de meu elegante chapéu Panamá:


Link para a crônica publicada em meu blog quando da morte de Lawrence Ferlinghetti:

https://ronaldowerneck.blogspot.com/2021/05/tudo-muda-nada-muda-na-cabeca-e-no.html




18 de dez. de 2023

CARLOS LYRA NO NUMBER ONE

O grande compositor da bossa nova Carlos Lyra morreu no Rio de Janeiro na madrugada do último sábado, 16 de dezembro, aos 90 anos.Vejam a seguir a entrevista que fiz com ele há mais meio século. 
Ultima Hora/ Revista – Rio, 14.04.1972
Por Ronaldo Werneck




     Carlinhos Lyra, um dos “papas” da bossa-nova, vai fazer show em boate pela primeira vez no Brasil. O espetáculo, com direção de Tarso de Castro, estreará no Number One. Carlinhos ainda não sabe direito as músicas que vai cantar (“estou resolvendo durante os ensaios, ainda não sei se coloco as músicas mais antigas”), mas é certa a inclusão de “Entrudo”, marcha-rancho feita com Ruy Guerra; de “Essa passou”, com Chico Buarque; e de “Passing by”, com letra de sua mulher Kate Lyra. 
     – Vou pegar meu violão, cantar e tocar, tirar uma onda. No Brasil, esta será minha primeira experiência com frequentadores de casas noturnas. Quando estava no México, cantei duas vezes em boate e acabei me aborrecendo. Numa delas, inclusive, saí no meio do show, irritado com a conversa dos fregueses, discutindo com eles, essas coisas. Espero que no Number One o negócio seja diferente. Vou testar a noite, embora sabendo que vou cantar para um público que normalmente consome minhas músicas.


MPBUC

     Para Carlinhos Lyra, o termo MPB não consegue exprimir com exatidão o que seja o atual panorama de nossa música, pelo menos em termos de mercado.
     – O mercado consumidor de discos no Brasil é formado por uma classe média culta e por uma classe média não culta.  E assim como é preciso distinguir estas duas faixas de público é preciso também determinar os campos da MPB. Prefiro considerar-me um “produtor” e não um criador musical. Não me refiro ao produtor que financia, mas ao que elabora produtos musicais, “como um operário que assume sua profissão”. E tenho plena consciência do tipo de público que minha música atinge, sei perfeitamente que minha área de atuação é dentro de uma faixa urbana e culta.
    Minha música não pode ser definida exclusivamente como MPB. Acredito que seu campo de atuação é outro, que no fundo ela está mais próxima da MPBUC (“Música Popular Brasileira Urbana e Culta”).


Debates


     Carlinhos Lyra esteve fora do Brasil durante cinco anos, trabalhando no EUA e no México. Participou do “Festival de Jazz de Newport”, apresentou-se no Carnegie Hall e fez o acompanhamento (violão) de praticamente todas as gravações de Tony Bennet, além de excursionar com Stan Getz pelo Japão e por quase todo o território norte-americano. No México, fez várias conferências e sua peça infantil “Ouvi Falar em Dragão?” acabou ganhando o prémio de melhor texto e melhor direção. 
     – Além do convívio com grandes músicos, o que considero mais importante em minha vida no exterior foi o fato de ter participado de vários debates em universidades, foram as conferências que fiz para um público jovem, interessadíssimo em nossa música. Principalmente, um show que fiz no México em plena praça pública, uma coisa fantástica. 
     – Voltei ao Brasil porque só aqui a gente consegue ter consciência exata dos problemas do país. De qualquer forma, é aqui que estão as “raízes” que me formaram, é aqui que encontro o estímulo necessário para incentivar minha produção. Recentemente, fiz um espetáculo no Teatro Marília, em Belo Horizonte, que me deixou emocionado: uma plateia de universitários lotava o teatro quase todas as noites, mostrando que o interesse pela música brasileira continua vivo e efervescente.


Universidades

     – Acho muito boa, por exemplo, a ideia do empresário Benil Santos: fazer shows musicais, com debates, nas universidades pelo país. Estou disposto a participar, junto com a maior parte dos compositores que têm consciência de que é nas universidades que se encontra a faixa de público que eles atingem.
     – Existe um tipo de compositor que, ao produzir, atende “principalmente” às suas necessidades expressionais; e outro que, sob pretexto de atender às necessidades estéticas das massas, visa unicamente suas próprias necessidades imediatas.  Acredito que os compositores que vão participar desses espetáculos nas universidades pertencem ao primeiro grupo. Em termos de vendagem de discos, o resultado de cada uma dessas atitudes é fácil de ser deduzido.


Romper com a qualidade 


     Pelo que observei, a ideia do Benil é mais ou menos semelhante aos show (música & debate) que fiz ano passado no Opinião e agora no Teatro Marília. Só que em proporções bem maiores, possibilitando a abertura de uma faixa de mercado da população universitária, consumidora em potencial do tipo de música que fazemos.
      – Por exemplo, eu me recuso a admitir que tenha rompido com tangos & boleros no início de minha carreira, mas sim com Dorival Caymmi e Ary Barroso, o que é bem diferente. Acredito que evoluir artisticamente seria romper não com a mediocridade, mas com a qualidade (inclusive a sua própria), para dar origem a novos produtos. Não visando o passado ou o futuro, mas o seu próprio tempo. 


Surto Cultural


     
Quase todos os compositores que, por um motivo ou outro, estavam radicados no exterior, estão de volta ao Brasil. Comenta-se a possibilidade de explosão de um novo movimento musical. Mas Carlinhos Lyra não acredita muito que isso seja possível.
     – Não me parece que uma atividade cultural sem a devida consciência e planejamento possa chamar-se “movimento”. No meu entender, a bossa-nova, por exemplo, foi um surto cultural decorrente de um movimento econômico. A crise que provocou a perda de identidade de muitos compositores parece indicar o fim de uma crise e o princípio de outra. 
     – O novo movimento de expansão econômica traz de volta os compositores que se deslocaram e evidencia muitos dos que ficaram ou surgiram nesse período. A desunião profissional (“cada um na sua”) e a “união artística” (cada um na dos outros, especialmente nos bem sucedidos) é atitude de uma grande parte, quando o inverso seria talvez o caminho para as soluções econômicas e artísticas. 


Ronaldo Werneck
in UH-Revista
Rio, 14.04.72


3 de dez. de 2023

ESPAÇO MÔNICA BOTELHO É ABERTO EM CATAGUSES



  Há exatos 40 nos, no último dia 5 de novembro, morria em Volta Grande o cineasta Humberto Mauro, razão de ser deste Centro Cultural. Mas 5 de novembro é também tempo de festa: não só Dia Nacional da Cultura  como aniversário de minha amiga Mônica Botelho, propulsora e  dama por excelência da cultura – a “Madame Cultura”,  que tem nela sua melhor tradição e tradução. 

Lembro agora: era aí pelos meados dos anos 80 e eu era muito festeiro no Rio de Janeiro. Com rima e tudo. Qualquer coisa era motivo para festa lá em casa. E festas havia mesmo sem motivo. Só pela poesia, só pela prosa, só pela alegria de receber, reencontrar amigos. Foi um tempo em que minha amiga Mônica Botelho aparecia sempre em meu apartamento de Copacabana. Nunca perdeu uma de minhas festas. Foi quando nossa amizade se fez mais forte.

No final do século, volto a morar em Cataguases. E reencontro Mônica, que também voltara e acabara de assumir a presidência da Fundação Ormeo Junqueira Botelho. Ela então me “convoca” (palavra certa) para de certa forma fazer na Fundação o que eu fazia no Centro Cultural Banco do Brasil: assessoria de imprensa, revisão, editoria de textos, essas tarefas do bem escrever, se é que eu bem escrevo – esse amontoado de textos e mais textos: há sempre controvérsias. 

Nossa parceria começa na inauguração do Anfiteatro Ivan Müller Botelho, segue na abertura das várias Usinas Culturais, e em outras importantes inaugurações comandadas por ela: Museu Chácara Dona Catarina, Centro Cultural Humberto Mauro, Memorial Mauro. E, claro, a abertura do primeiro Cineport em 2005, um acontecimento na cidade. 

Em 2002, com a inauguração deste Centro Cultural, Mônica e eu passamos a “bater ponto” diariamente, e lado a lado, exatamente aqui, neste terceiro andar. E nada mais justo que ele agora receba o nome de Espaço Mônica Botelho. Foi quando pude observar melhor a criatividade de minha amiga, o seu total envolvimento não só com os afazeres burocráticos da Fundação como com o dia-a-dia da divulgação dos eventos, das várias mostras, da edição das publicações. O seu compromisso com o novo. De tudo Mônica participava e sempre aparecia com ideias inovadoras, tornando a feitura desses produtos da Fundação um verdadeiro luxo.

Eu ficava fascinado com sua inventividade na escolha das cores para os catálogos – e principalmente para a revista Usina Cultural que editávamos, com todas as suas páginas harmonicamente em policromia, seu inusitado formato de grandes dimensões.  Foi quando descobri, surpreso, a excelente designer que era minha amiga. 

Em contraponto ao formato gigante da revista, Mônica criou um formato também inusitado para os catálogos com meus textos para as exposições fotográficas realizadas aqui na Galeria Zequinha Mauro, no corredor de entrada e no hall deste prédio. Eram “livrinhos de textimagens”, num formato diminuto, 10 por 8 cm. E fizeram grande sucesso. Em 2002, a abertura da Galeria, dedicada na época exclusivamente a mostras fotográficas, foi com trabalhos do próprio Zequinha, o grande fotógrafo filho de Humberto Mauro. 

A seguir, veio a mostra Pedro Comello, com os retratos de sua filha Eva Nil. Na sequência, o cataguasense Daniel Fachini mostraria as fotos que fez na Nova York de 2001, quando da queda das Torres Gêmeas. E Walter Carvalho as fotos inéditas de Humberto Mauro em Volta Grande, inclusive flagrantes do enterro do cineasta em 1983. Logo, a belo-horizontina Mariângela Chiari voltaria seu olhar sobre a China e, entre outras mostras fotográficas, Mônica traria ao Centro Cultural uma ousada exposição de Egven Bavcar, o filósofo e fotógrafo cego esloveno. 

Ao mesmo tempo, o Museu Chácara Dona Catarina fervia com exposições dedicadas às artes plásticas, com artistas cataguasenses, regionais e de outras estados, a exemplo de nomes do porte de Amilcar de Castro e Sonia Ebling. Era um tempo de grandes eventos, como o Cineport, que trouxe a Cataguases em 2005 grandes nomes não só de nossa cinematografia como a das demais nações da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Inclusive o embaixador José Aparecido de Oliveira, um dos fundadores da CPLP, e o ex-presidente português Mario Soares, que brilhou em sua participação na mesa de abertura do Festival.  

O Cineport, que se estendeu no ano seguinte a Portugal e depois a João Pessoa, acabou por fazer de Mônica, na sequência, uma espécie de primeira dama da produção cinematográfica e gerou o Polo Audiovisual da Zona da Mata. O que tornou Cataguases uma espécie de cidade-set, uma cidade locação.

Mas isso tudo são apenas detalhes do empreendedorismo de minha amiga, de sua extrema capacidade de inovar-se. Quero destacar aqui seu carisma. E a sofisticada e poderosa presidente da Fundação tem um quê de simplicidade que sempre me cativou. Como naquela tarde em que, em meio ao trabalho aqui nesta sala, ela virou-se pra mim e propôs fazermos um lanche. Para minha surpresa, saímos daqui para a praça aí em frente e sentamos num desses bancos de pastilhas enquanto Mônica comandava um inacreditável cachorro-quente do Leno, acompanhado de uma “coquinha”, como ela gostava de dizer. E jogamos conversa fora, enquanto ela comia seu sanduíche com toda a autoridade. Essa é minha amiga que eu não esqueço. 

Há alguns anos, e dias após sua palestra aqui no Centro Cultural Humberto Mauro, dentro do Projeto Grandes Escritores, recebo email da escritora Marina Colasanti: “Ronaldo querido, obrigada pelo carinho e generosidade. Ainda bem que Cataguases gostou de mim, porque também gostei dela. E um beijo para Mônica, fiquei entusiasmada com ela, com sua atividade, com o perfil que está imprimindo à cidade”. Dias depois, era seu marido, o poeta Affonso Romano de Sant´Anna, quem me escrevia: “Ronaldo, Marina voltou encantada de conhecer melhor essa parte viva, pulsante de Minas, essa Cataguases única”. 

Pois é, “essa Cataguases única” deve muito a Mônica Botelho. Ainda no ano passado, a convite de Eduardo Mantovani, li aqui no Centro Cultural pequeno texto escrito em comemoração aos 35 anos da Fundação Ormeo Junqueira Botelho. Termino este depoimento com o parágrafo final daquele meu texto: 

 “Hoje, quando a Fundação completa seus 35 anos, o Centro Cultural 20 e o Memorial Humberto Mauro 15, eu acrescentaria a esse texto, e acrescento agora, a importância de Mônica Botelho para a Fundação como um todo. Se nos 1940 o escritor e industrial Francisco Inácio Peixoto foi de fundamental importância para a formação de uma Cataguases arquitetonicamente modernista, a partir do início deste século Mônica Botelho passa a ocupar o seu papel. E com todo o direito. Ela é a grande propulsora da arte e da cultura na cidade. Seu nome está perenemente gravado como tal e será lembrado a cada vez que os cataguasenses e visitantes se depararem com os monumentos artísticos/culturais que aqui se encontram – e seu para sempre legado”. 

Ronaldo Werneck

Cataguases, 1º/12/23




16 de out. de 2023

VINICIUS POR VINICIUS: CARTA ABERTA A MARIA LUCIA RANGEL

   

     Querida Maria Lucia, o seu Vinicius chegou assim como quem não quer nada e logo desviou minha atenção de qualquer outra coisa: há dois dias que não largo o livro, que agora chamo de “Vinicius por Maria Lucia”. Na dedicatória que me fez, você bem diz “Vinicius por Vinicius" mostra que nosso amado poeta sabia tudo, e sentia também”. Sem dúvida, sem dúvida.

     Eu às vezes lia o poeta em sua coluna da Última Hora, Vinicius por Vinicius, que resultou no título de sua obra, Maria Lucia. Terminei ainda agora a leitura desse seu livro, onde você pinçou preciosos aforismos de Vinicius. Muitos deles eu já conhecia, já havia lido aqui e ali, e você me fez bem em relembrá-los. Outros, não. O que me enriqueceu a leitura. Marquei muitos deles, como sempre faço nos livros que me são caros. A seguir, algumas dessas marcações que fiz, com observações que me permito fazer agora.


A infância & a Nona de Vinicius



     “O mar da infância banha até hoje o meu peito com suas marés sussurrantes” – diz Vinicius –, o que nos leva (a mim, a você, a tutti quanti) ao Sartre de Les mots: “Ils ont oublié leur propre enfance”. E também ao Rilke, na primeira de suas Cartas a um jovem poeta: “Mesmo que se encontrasse numa prisão, cujas paredes impedissem todos os ruídos do mundo de chegar aos seus ouvidos, não lhe ficaria sempre sua infância, essa esplêndida e régia riqueza, esse tesouro de recordações? Volte a atenção para ela. Procure soerguer as sensações submersas desse longínquo passado: sua personalidade há de reforçar-se, sua solidão há de alargar-se e transformar-se numa habitação entre lusco e fusco diante da qual o ruído dos outros passa longe, sem nela penetrar”. 
     “O difícil é separar. Casar é facílimo”, diz Vinicius.  Meu amigo e parceiro Carlinhos Vergueiro falava que eu devia ter conhecido o também seu parceiro Vinicius, pelo menos para papear sobre casamentos. Eu perdi a conta dos meus, mas acho que “não faria feio” perto dos do Vinicius. Aquele lance da “nona de Beethoven” referindo-se a Gilda Mattoso é simplesmente hilário: “Vocês conhecem a nona do Beethoven? Pois essa aqui é a nona de Vinicius”.  Conheci a Gilda nos anos 1990, quando eu era Assessor de Comunicação do CCBB: na época, nós a contratamos para assessoria de imprensa de alguns eventos. Em 2005, já em Cataguases, quando eu era Diretor de Comunicação do Cineport, o Festival de Cinema dos Países de Língua Portuguesa, eu indiquei a Gilda para divulgar o Festival. Dito e feito. Há anos não vejo “a nona do Vinicius”. 

 Mocassins & Poesia



     Não conheci pessoalmente o Vinicius, i.e.: eu o vi “de perto” uma ou duas vezes. Como num dia da década de 1950 em que ele “surgiu” no Colégio de Cataguases para um papo sobre poesia com os alunos. Eu, com meus parcos 12 anos, mal sabia o que era aquilo, poesia. Menos ainda quem era esse tal de Vinicius de Moraes. Mas fui assistir e fiquei impressionado. Então poeta era aquilo? Aquela aparição com sua camisa vermelha, brancos mocassins do Moreyra então na moda, cabelos caindo pela nuca afora? Na verdade, o poeta fora visitar o seu menino que para lá mandara como interno (Filhos: Filhos melhor não tê-los!), o meu colega de classe Pedrinho – que, claro, comia gilete, bebia xampu e fumava todas as bingas de meus cigarros.  

   Sim, não posso dizer que tenha conhecido o poeta, embora tenha assistido a vários de seus shows. Lembro-me até hoje de um deles, no Teatro Opinião, onde sentei ao lado da mesa onde ele “atuava” com seu cigarro e copo de uísque – e eu me sentia exalando as baforadas do poeta a cada canção que ele cantava. 

    Não, não conheci o Vinicius – mas acabou que fiquei amigo de três de seus grandes parceiros: Carlinhos Vergueiro, Carlinhos Lyra e Baden Powell. E todos me diziam maravilhas do poetinha. Do Vergueirinho, amigo querido, já andei falando por aí. Do Carlinhos Lyra, lembro-me dele me dizendo que Vinicius lhe pedia, ao entregar a letra de uma canção, que a repetisse várias vezes no violão. Às vezes balançava a cabeça de cima para baixo, parecendo um sinal de aprovação, mas Lyra sabia que aquilo era um não. O compositor aprendeu que aquela era uma forma elegante de o poeta reclamar, pois não estava gostando do que ouvia. Lyra encontrou em Vinicius um tipo de sensibilidade especial para detectar a combinação perfeita entre melodia e letra.


Baden & Vinicius



     Já com Baden Powell, nossas conversas caíam volta e meia em seu grande amigo Pierre Barouh – o ator-compositor francês, grande entusiasta da música brasileira, principalmente da bossa nova, que fez a versão e gravou o “Samba da Benção”, dele com Vinicius para o filme Um homem uma mulher. Isso porque Barouh era uma de minhas admirações desde que eu assistira ao filme de Claude Lelouch, principalmente por uma de suas canções, onde sussurrava frases como A l´ombre de nous/ Tout va rester/ Et restera toujours/ Un gôut d´éternité/ Et ce soleil/ Que brille tan fort/ Que nous brûle/ Et nous devore/ Encore, encore, ou coisa parecida, pois – encore, encore – eu cito de cor e me estendo, minha querida Maria Lucia, por tanto gostar do jogo de palavras da canção de Barouh, daquela imagem de “um gosto de eternidade”. 

     Mas, de Pierre Barouh, Baden saltava quase sempre para seu parceiro Vinicius de Moraes. Ele falava com muita saudade do poetinha, dos porres que tomaram juntos, dos pertinentes “recolhimentos” estratégicos hospitalares. Formosa, por exemplo, o antológico samba da dupla, surgiu da visão de uma bela passageira do trem noturno onde eles se encontravam rumo a um show em São Paulo, mas terminou de ser criado na Clinica São Vicente, onde os dois estavam internados. Desintoxicação à base de soro e uísque, é claro. 

      Pois é, Baden, que saudade de nossos papos e de vê-lo, violão em punho. Nunca mais a agilidade de seus dedos mágicos, os acordes alucinados, alucinantes, inesperados. Nunca mais Baden de branco e fala magra e mansa e magro – e tão mago e leve como se no fim por vício levitasse. Como se pelas veredas de Vinicius seu violão voasse. 


O material da vida



      “O material do poeta é a vida, e só a vida, com tudo o que ela tem de sórdido e sublime”. Bingo! “Cada poeta é uma coisa em si, mas todos os poetas devem o mesmo à Poesia: A própria vida”. Bingo 2!

     “Acho que os poetas servem para não serem presidentes da República”. Engraçado que me parece ter lido novamente, dia atrás, em alguma coluna de jornal, essa tirada que já conhecia do Vinicius. Onde? Quando?

     “Liberdade é poder cagar de porta aberta”. Aqui Vinicius parece copiar a célebre máxima de seu grande amigo Antônio Maria (que o chamava de “Poesia”): “a melhor coisa de viver sozinho é poder ir ao banheiro de porta aberta” (ou coisa parecida: cito de cabeça), que meu amigo Paulinho Pontes colocou no espetáculo “Brasileiro, Profissão: Esperança”.  

     “Você já passou um Sete de Setembro, Tomzinho, sozinho num porto estrangeiro, numa noite sem qualquer perspectiva? É fogo maestro”. Adoro essa “Carta ao Tom”, enviada do Porto do Havre em 1964, e lida no show “Vinicius e Caymmi no Zum Zum” (tenho até hoje o LP e até mesmo um cd do show, lançado depois). Adoro também o poema “Olha aqui, Mr. Buster”, aquele que não sabia (e como poderia?) o que é torcer pelo Botafogo. 


Miguel Faria: Chico & Vinicius




     “(João) Cabral gosta muito de mim e me disse uma vez que se o Brasil tivesse um poeta com meu talento e a sua disciplina, o país enfim teria um grande poeta”. Essa citação de Caetano (sobre a tirada do Vinicius) no filme de Miguel Faria Jr me fez voar novamente até Lagos, no Algarve, quando realizamos em 2006 a segunda versão do Cineport. Eu editava o jornal “Cineport na Tela” e entrevistei diretores de vários países presentes ao Festival. Acabara de ver o Vinicius, do Miguel Faria, e me emocionara quase às lágrimas. Foi uma de minhas melhores entrevistas a que fiz com ele. Anos depois, eu estava em Búzios quando o Miguel me ligou, perguntando se podia usar algumas crônicas do “jovem” Chico Buarque no filme que estava fazendo sobre ele, e se eu tinha outras crônicas além das que publicara. 
     Eram crônicas que o Chico publicou, do alto de seus 15 anos, no jornal “O Pirilampo” dos alunos internos do Colégio de Cataguases, onde ele escrevia sob o pseudônimo de “Bananal”. Eu havia organizado em 2013 uma edição especial sobre Cataguases para o Suplemento Literário Minas Gerais e publicara duas crônicas do Chico (com autorização dele, claro!).  Disse pro Miguel que assim que voltasse de Búzios nos falaríamos de novo e veria outras crônicas do Chico para passar pra ele, se fosse o caso. Parece que não foi: ele não me ligou, eu também pra ele não liguei. O filme dele ficou pronto e a coisa ficou por isso mesmo. Gosto do filme do Chico, mas o do Vinicius me emociona mais. 


Ovalle, Winter, Romano



     Na página 95, Maria Lucia, você cita Vinicius ao exaltar seu grande amigo Jayme Ovalle, “o mistério poético em toda a sua inocência, em toda a sua beleza natural”. E, na página 124, a “Contracapa para Paul Winter”, com aquela definição precisa: “(...) Bossa Nova é o canto puro e solitário de João Gilberto (...) buscando uma harmonia cada vez mais extremada e simples nas cordas de seu violão (...).” 

     Pois bem, olha a coincidência. Nos anos 1990, a então coordenadora cultural da Faculdade Cândido Mendes em Ipanema, minha amiga Eridan Leão, convidou-me para fazer uma palestra (ou um “papo”, que melhor me cabe) sobre canções & poemas, letristas & poetas. Isso porque havia dito a ela que estava escrevendo alguma coisa sobre o tema, provocado por um quiproquó com o também meu amigo, o poeta Waly Salomão. Acabou que não rolou: Eridan saiu da Cândido Mendes e eu deixei meu texto de molho. 

     No final da década, já em Cataguases, resolvi retomar a coisa: convidei uma amiga para falar comigo os poemas (de vários e vários poetas) e um trio que executou as canções (de vários e vários letristas), e tudo virou um espetáculo chamado “Dentro & Fora da Melodia”. 

     Em 2001, gravamos um cd ao vivo naquilo que o Affonso Romano de SantAnna chamou de talk-show na contracapa do meu disco. Lá pelas tantas eu falava um trecho de um poema de Vinicius que eu adoro, talvez o poema dele de que mais gosto, O Haver, fechando com aquela quadra mais-que-perfeita: “Resta esse diálogo cotidiano com a morte, esse fascínio/ Pelo momento a vir, quando, emocionada/ Ela virá me abrir a porta como uma velha amante/ Sem saber que é a minha mais nova namorada”.


Leitura cotovelar




     O poema, talvez o último que Vinicius escreveu, estava num poster na sala do meu apartamento de Copacabana, anos 1980. Engraçado que, lembro agora, o poster-poema foi um presente dado pelo Affonso Romano. E eu sempre o lia, fascinado por aquele “O Haver” pendurado em minha parede: um pôster imenso, ilustrado por uma foto de que gosto muito do Vinicius, ele lendo atentamente numa mesa, o cotovelo sobre ela e uma das mãos na cabeça. Exatamente como seu amigo Rosário Fusco me ensinou um dia: “Leitura a sério só a de mesa e cotovelo. Cabeça na mão, olho no livro, cotovelo na mesa. Leitura que preste, só mesmo a cotovelar, meu caro”.  O poema do Vinicius era então inédito em livro. Acabou que um dia ele sumiu de lá, pousou pra fora da parede e desapareceu assim num só repente: voou Copacabana afora, como se para sempre. 
     Lembrei-me dele quando estava começando a reescrever o “papo-palestra” como roteiro para o show em que estava trabalhando. E calhou de a Marió (acho que foi ela, minha querida Marió, amiga e namorada daquele tempo, assessora de imprensa das melhores) me apresentar a uma das filhas do Vinicius, de quem era amiga, não me lembro agora se pra Georgiana ou pra Luciana. Sei que ela (Luciana? Georgiana?) me ditou todo o imenso poema por telefone, num tempo pré-celular. No show, um pouco antes da entrada em cena do poema, eu falava trechos dessa “Contracapa para Paul Winter” (sem saber de onde tirara o texto, como digo mais adiante):
     “Bossa Nova é mais Greenwich Village do que a Rua 52, é mais uma chuva fina olhada através da janela de um modesto hotel da Rua 46 que um rubro poente sobre a ilha de Manhattan, visto do Empire State Building. Bossa Nova – para citar esse grande new yorker que foi Jayme Ovalle, é mais a namorada que abre a luz do quarto para dizer que está, mas não vem, que a loura bonita num casaco de mink que se leva para dançar no El Morocco. Bossa Nova é mais a solidão de uma rua de Ipanema que a agitação de Copacabana. Bossa Nova é o canto puro e solitário de João Gilberto, buscando uma harmonia cada vez mais extremada e simples nas cordas de seu violão – e uma emissão cada vez mais perfeita para os sons e palavras de sua canção”. Vinicius de Moraes, Janeiro de 1965.
     Mandei o cd para alguns amigos, inclusive o jornalista e escritor Humberto Werneck que me ligou depois, perguntando de onde eu tirara o texto de Vinicius, pois estava escrevendo um livro sobre Jayme Ovalle e queria publicar aquele texto. Não é que eu não me lembrava? Tinha uma vaga ideia de que, quando estava escrevendo meu texto, ainda no Rio, extraíra as palavras de Vinicius da contracapa de um disco. Mas qual? Você agora me salvou, Maria Lucia: era o texto que Vinicius escrevera para a contracapa de um disco do grande saxofonista americano Paul Winter. Pena que agora o Humberto Werneck já publicou seu livro, “O Santo Sujo – A Vida de Jayme Ovalle”.


Antifiguri ou Anfiguri?



     Na página 112 de seu livro, quando Vinicius fala do filme Limite, você ressalta (ou o jornal A Manhã, onde aliás Vinicius publicou nos anos 1940 uma série de artigos defendendo o cinema mudo contra os filmes sonoros) que a fotografia é de Edgar Brasil. Bingo! Foi Adhemar Gonzaga quem pediu a Humberto Mauro que indicasse o seu fotógrafo Edgar Brasil para o filme de Mário Peixoto. Não só o fotógrafo, como a câmera, a velha Ernemann 35mm, alemã, com que Mauro rodara seus filmes pioneiros na Cataguases dos anos 1920. Fica uma pergunta, minha amiga: o que, diabos é “antifiguri”, que está na citação de Vinicius? Procurei, procurei e não achei. Não seria “anfiguri”?
     Na página 132, “O problema de São Paulo é que a gente anda, anda e nunca chega a Ipanema”. Como o próprio Vinicius gostava de dizer, “que coisa mais direita!”. E, na página 152, essa grande sacada do poeta: “Arte não é só fazer: é também esperar. Quando o veio seca, nada melhor para o artista que oferecer a face aos ventos, e viver, pois só da vida lhe poderão advir novos motivos para criar”.
     Como eu gostaria de ter conhecido o Vinicius! É uma das minhas falhas, “do rol das confessáveis”, como dizia o Rosário Fusco. Mas na verdade eu não o “pratiquei” como também gostava de dizer o seu (dele, Vinicius) amigo Fusco. Eu não o “pratiquei”, o que foi uma pena. Isso aí, minha querida amiga. Acabou que escrevi talvez menos que devia sobre seu livro, que curti muito. Mas ele merece muito mais. Está aqui agora em minha biblioteca o seu “Vinicius por Vinicius”, ao lado de outros e outros livros de e sobre Vinicius. Parabéns pela bela e preciosa pesquisa. 
Beijos do Ronaldo


VINICIUS MEU TEMPO É QUANDO




Com as lágrimas do tempo
E a cal do meu dia
Eu fiz o cimento
Da minha poesia. 
E na perspectiva
Da vida futura
Ergui em carne viva
Sua arquitetura.

     Em paralelo ao livro da Maria Lúcia, reli alguns textos constantes do Catálogo de “Meu tempo é quando”, o grande evento dedicado a Vinicius pelo CCBB/Rio em 1990. Destaco a seguir, trechos de alguns desses textos que nos permitem ver a grandeza do poeta. 


Laetitia Cruz de Moraes (irmã)


     Irmã mais moça, só me lembro de muito mais tarde, com aquele seu olhar distante e resoluto de quem tem uma ingente tarefa a realizar. Aí não eram sonhadores os olhares do poeta menino. Eram talvez ausentes, mas determinados, como se vissem logo adiante um grande dever a cumprir... e o tempo fosse pouco. (...) Menino ainda, confessou à minha mãe que desejaria ser amado por todas as mulheres e amigo de todos os homens.
     (...) Acompanhei-te de perto, vi a grande poesia surgir de ti e guardei, comovida, a lembrança dessa revelação que me fez, do irmão, um ser à parte, tocado de graça. Ou talvez de desgraça – pois haverá alguma coisa pior do que ver sempre além das coisas, ter a morte presente, viver a consciência do efêmero? Será a graça da poesia, no entanto, bem maior que tudo isso, pois permitirá a Vinicius transmitir em beleza sua permanente angústia.
      (...) Tinha o trato suave, dançava bem e era o monstro de simpatia que continua a ser até hoje.  (...) Tem mais imaginação que o comum, grandes ideias, amigos que o adoram. À sua presença o ar fica mais denso, cria-se uma atmosfera de expectativa. Algo está sempre para acontecer. 
     Se me fosse dado descrever um poeta pelo que sei de um deles, diria que um poeta será sempre manso, suave, de gestos calmos e riso bom. Terá grandes olhos claros e abertos, a voz doce e amiga, a palavra avara. Mesmo em meio ao maior entusiasmo, à mais completa participação da vida, há de ser um eterno ausente, atento à sua música interior. Será quieto, adaptado a seu meio e sempre estranho a ele. Nada exigindo, terá o direito de contar com todos que o amam, inapelavelmente. 
     De uma imensa bondade, será às vezes cruel e indiferente, mas sempre delicado. Nunca usará de gestos bruscos ou palavras duras. Capaz de violência, terá, no entanto, horror à violência, à injustiça social. Guardará dentro de si um grande, inesgotável amor pela humanidade e derramará torrentes de ternura sobre as mulheres, as herdeiras da vida e do sofrimento. Será generoso e leal, incapaz de um sentimento mesquinho, errando em grande e largo. E o seu nome, perdoem-me, será muito provavelmente, Vinicius.

Laetitia Cruz de Moraes (irmã do poeta)
Rio de Janeiro, 2-11-1961.

Antonio Candido

     Os poetas que valem realmente fazem a poesia dizer mais coisas do que ela dizia antes deles. Por isso, precisamos deles para ver e para sentir melhor, e eles não dependem das modas nem de escolas, porque as modas passam e os poetas ficam. Se hoje dermos um balanço no que Vinicius de Moraes ensinou à poesia brasileira, é capaz de nem percebermos quanto contribuiu, porque justamente por ter contribuído muito, o que fez de novo entrou para a circulação, tornou-se moeda corrente e linguagem de todos. 

  Do que trouxe, lembro apenas a peculiaríssima ligação que estabeleceu entre o mar, a praia e a vida amorosa. (...) E a capacidade de dessolenizar as coisas solenes para guardar o que tem de sério no meio da pilhéria aparente. E a capacidade de se apegar às coisas pequenas e humildes para lhes dar uma gravidade que não vem do tom, mas da estrutura latente de paradoxo que enforma sua poesia. 



Manuel Bandeira

(Sobre as “Cinco Elegias” de Vinicius, 1939)
     Ele que aspirava ser apenas homem e não poeta, “ser apenas Moraes sem ser Vinicius”, é aqui mais do que nunca Vinicius sem mais nada, um monstro de delicadeza, que, como certos santos, distribuiu todas as suas roupas entre os pobres e saiu nu, que loucura!
     (...) A evolução do poeta se vem processando com uma abundância e variedade que nos deixa a nós, seus admiradores e amigos, convencidos de estarmos diante de uma força criadora de natureza sem precedentes em nossa literatura. Porque ele tem o fôlego dos românticos, a espiritualidade dos simbolistas, a perícia dos parnasianos (sem refugar, como estes, as sutilezas barrocas) e finalmente, homem bem do seu tempo, a liberdade, a licença, o esplêndido cinismo dos modernos. 


Tom Jobim

(Sobre uma noite em dormiram no mesmo quarto de um hotel em Nova York)

     O Poetinha, conforme ia bebendo, ia passando do branco pro rosa, do rosa por vermelho, do vermelho pro roxo! Botou o ar condicionado no máximo e deitou-se. O Poetinha gostava de se ninar para adormecer. Cantava baixinho as cantigas que Maria lhe cantava na infância, dava-lhe tapinhas na barriga: “Tutu Marambaia, sai de cima do telhado deixa esse menino dormir sossegado”. Vinicius dormia e eu aproveitava para diminuir o ar condicionado que ficava, baixo, ao lado da cama de Vinicius, ao alcance de sua mão. Pois o danado girava logo o botão para o frio máximo, o quarto gelava e eu, que remédio, me metia embaixo das cobertas.
     Um dia Vinicius me disse que só conseguia dormir depois que sua bunda gelava. Ele, o autor do Orfeu Negro, tinha uma bunda branca difícil de congelar, e só dormia despido. Era um urso polar. 


Vinicius pra fechar: Sobre Poesia

O material do poeta é a vida, e só a vida, com tudo o que ela tem de sórdido e sublime. Seu sentimento é a palavra. Sua função é a de ser expressão verbal rítmica do mundo informe de sensações, sentimentos e pressentimentos dos outros com relação a tudo o que existe ou é passível de existência no mundo mágico da imaginação. Seu único dever é fazê-lo de maneira mais bela, simples e comunicativa possível, do contrário ele não será nunca um bom poeta, mas um mero locubrador de versos.

Ronaldo Werneck
Cataguases, 2023 :
em plena primavera. 



O Haver comme il faut

     A seguir, o poema O Haver, de Vinicius. Na integra, pois é meu favorito entre todos os poemas que Vinicius escreveu. 


O HAVER

Resta, acima de tudo, essa capacidade de ternura
Essa intimidade perfeita com o silêncio
Resta essa voz íntima pedindo perdão por tudo:
— Perdoai! — eles não têm culpa de ter nascido...

Resta esse antigo respeito pela noite, esse falar baixo
Essa mão que tateia antes de ter, esse medo
De ferir tocando, essa forte mão de homem
Cheia de mansidão para com tudo quanto existe.

Resta essa imobilidade, essa economia de gestos
Essa inércia cada vez maior diante do Infinito
Essa gagueira infantil de quem quer balbuciar o inexprimível
Essa irredutível recusa à poesia não vivida.

Resta essa comunhão com os sons, esse sentimento
Da matéria em repouso, essa angústia de simultaneidade
Do tempo, essa lenta decomposição poética
Em busca de uma só vida, uma só morte, um só Vinicius.

Resta esse coração queimando como um círio
Numa catedral em ruínas, essa tristeza
Diante do cotidiano, ou essa súbita alegria
Ao ouvir na madrugada passos que se perdem sem memória...

Resta essa vontade de chorar diante da beleza
Essa cólera cega em face da injustiça e do mal-entendido
Essa imensa piedade de si mesmo, essa imensa
Piedade de sua inútil poesia e sua força inútil.

Resta esse sentimento da infância subitamente desentranhado
De pequenos absurdos, essa tola capacidade
De rir à toa, esse ridículo desejo de ser útil
E essa coragem de comprometer-se sem necessidade.

Resta essa distração, essa disponibilidade, essa vagueza
De quem sabe que tudo já foi como será no 
vir-a-ser
E ao mesmo tempo esse desejo de servir, essa
Contemporaneidade com o amanhã dos que não têm ontem nem hoje.

Resta essa faculdade incoercível de sonhar
E transfigurar a realidade, dentro dessa incapacidade
De aceitá-la tal como é, e essa visão
Ampla dos acontecimentos, e essa impressionante

E desnecessária presciência, e essa memória anterior
De mundos inexistentes, e esse heroísmo
Estático, e essa pequenina luz indecifrável
A que às vezes os poetas dão o nome de esperança.

Resta essa obstinação em não fugir do labirinto
Na busca desesperada de alguma porta quem sabe inexistente
E essa coragem indizível diante do Grande Medo
E ao mesmo tempo esse terrível medo de renascer dentro da treva.

Resta esse desejo de sentir-se igual a todos
De refletir-se em olhares sem curiosidade e sem história
Resta essa pobreza intrínseca, esse orgulho, essa vaidade
De não querer ser príncipe senão do próprio reino.

Resta essa fidelidade à mulher e ao seu tormento
Esse abandono sem remissão à sua voragem insaciável
Resta esse eterno morrer na cruz de seus braços
E esse eterno ressuscitar para ser recrucificado.

Resta esse diálogo cotidiano com a morte, esse fascínio
Pelo momento a vir, quando, emocionada
Ela virá me abrir a porta como uma velha amante
Sem saber que é a minha mais nova namorada.

Vinicius de Moraes