10 de mai. de 2016

Rosário Fusco:um espetáculo


Rosário Fusco de novo e sempre. Após publicar uma série de crônicas sobre a entrevista que eu e Joaquim Branco fizemos com o escritor, que saiu no Pasquim há quarenta anos, lembrei-me de um texto que escrevi também nos anos 1970 e de que Fusco gostava muito. Ele foi publicado em 1985 no livro “Marginais do Pomba”. Editado por Fernando Cesário, Joaquim Branco e por mim, “Marginais do Pomba” era uma antologia de textos de vários escritores cataguasenses, dos Verdes dos anos 1920 ao grupo da Revista Meia Pataca, anos 1940; daí ao pessoal do Totem, década de 1960, chegando aos então novíssimos dos anos 1980.
Como aqueles imponderáveis personagens do realismo fantástico (evoé, Fusco!), também o personagem do meu texto-entrevista (verdadeiro? fictício?) repetia sempre o seu bordão “eu sou um espetáculo”, como se vírgula fosse. A partir daí, Fusco não podia me ver sem bradar do alto dos seus metro e oitenta: “eu sou um espetáculo”. Era mesmo: não o meu personagem, mas o próprio Fusco. Meu texto vai a seguir, como mais uma homenagem ao meu espetacular amigo Rosário Fusco de Souza Guerra.


RINGO NÃO DISCUTE: MATA
 Três indivíduos armados com metralhadoras penetram em uma agência bancária no interior do Rio Grande Sul e rendem o gerente. Sorrateiramente, o guarda do banco saca seu 38 carga dupla e com o braço colocado às costas – no melhor estilo dos caubóis – liquida de uma só vez os assaltantes.
Assim Luiz Mendonça, 37 anos, solteiro, guarda bancário e fotógrafo amador, explica o cognome de Ringo. Onze mortes nas costas (“mas pela frente”), inclusive um goleiro do Coríntians (“eu era centroavante do Santos”), morto com potente tirambaço (“a pelota bateu na trave e acertou nas costas, bem nos rins: morreu na hora”).

Traído pelos coronéis
Ringo é do interior de Minas, filho de índia com espanhol (“mas eles gostam de ser brasileiros”). Foi tropeiro, carregou caminhões de terra, cortou bambu para fábrica de papel. “Meu passado é muito triste, sou um humilde, um humilhado. Mas sou um espetáculo”.
Aos 20 anos entra para a polícia em Belo Horizonte e acaba indo para o Rio Grande do Sul com o SEG (Serviço Especial de Guarda), “na captura de bandidos”. Pelo sim, pelo não, terminou expulso após longa temporada num Hospital Psiquiátrico. Dezessete vezes tratado a choques elétricos. “Fui traído pelos coronéis”.
Fotógrafo de polícia, fazia reportagens com Pio XII, “o Amaral Neto da época”. Aprendeu sozinho: “sou um burocrata formado, um autodidata fotográfico. Faço reportagens e os clientes não pagam. Mas não sou moleque: jamais bato flash sozinho para enganar a freguesia. Sou profissional honesto e positivo. Eu sou um espetáculo”.

Um espetáculo
Nove horas da noite num botequim do interior de Minas. Cabelo à francesa, literalmente penteado pra frente, camisa vermelha com bolotas brancas, terno de linho branco com bainha dupla, imensos óculos escuros cobrindo quase metade do rosto, máquina fotográfica a tiracolo, Ringo rides again.
Entre um chope e um conhaque, e outro, e outros, fala de sua ida à Europa, Oliúdi & adjacências, acompanhado o indefectível Pio XII, “um espetáculo, o maior repórter que já existiu”. Relembra um campo de nudismo que fotografou: “Uma pouca vergonha. Não ignorei a pátria deles (Oliúdi?), mas ela é porca. Não é como o Brasil, onde vivemos prazerosamente e a amizade é total. Aqui não existe covardia. Melhor do que o Brasil só Deus. Mas sou internacional”.

Sexual masculino
       Para de repente, leva um cigarro à boca, acende-o à maneira dos mocinhos de cinema, riscando o fósforo com uma só mão, e emenda de um jato, quase sem respirar: “Sou um infeliz no mundo. Mas sou muito honesto. Dou muita falta de sorte com as mulheres. Fui noivo, mas casamento não é pra agora, é pra hoje ou amanhã. Mulher é mulher: namorada dá dor no saco. Incha. As mulheres são comerciais de acordo com a frequência do sexo masculino”.
    Solta a fumaça, esvazia o corpo, estende o indicador e completa solenemente: “Mas eu frequento o feminino. Sou um sexual masculino. Sou um cara psicológico, um espetáculo”.
      A vitrola do botequim ataca de Roberto Carlos, mas Ringo rebate de sola: “Esse cara não é bom, bom mesmo é o Waldick Soriano. O Waldick é um grande patriota, como o Presidente João Figueiredo: amou, cresceu e lutou pelo Brasil. Já o Pelé é patriota em despedida. Jango, não sei, foi traído. Mas JK era um bom patriota, como o Getúlio, que foi um espetáculo, o dono do Brasil. Tudo que o Brasil faz é bom porque tem progressão. A democracia sou eu. Amo a terra em que vou morrer.”

Deixa comigo
    “Quando era menino, meu pai me deu uma chicotada por causa de um boi. Mamãe me protegeu. Papai me abandonou no mundo. Gosto muito da mamãe. É uma piranha, mas gosto dela: é mulher patriota, um espetáculo.
     “Meu revólver é silencioso e sou rápido como o Ringo. Puxo mesmo o gatilho. Mas me arrependo das mortes que fiz, é um horror a minha vida. Dormindo, as mortes me sobem pelas pernas, como minhocas. Sou mau, mas não faço maldade. Deus não deixa. As boas amizades é sempre a mim, entanto a maldade não existe entre ambos (põe aí – ambos: plural). Meu passado total é uma tristeza. Sou muito psicológico, eu sou um espetáculo.”
      Nessas alturas, já de porre, Ringo cisma que o dono do botequim está nos olhando de soslaio. Tira os óculos e diz, tão solene quanto lhe permite a voz pastosa: “Deixa comigo”. E dá de alisar a cintura. Percebo que o famigerado 38 esta sob o paletó. Realmente, uma loucura. Só a custo consigo retirar nosso herói do chamado recinto. Ringo some dentro das pradarias da meia-noite, o andar gingado, de caubói bêbado. Um espetáculo cambaleante e para sempre. 

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