23 de mai. de 2016

Cauby! Cauby!


 A recente morte de Cauby Peixoto me fez lembrar a canção que Caetano Veloso escreveu para ele, e que foi título do álbum gravado  em 1980: “Lembro eu deitado na relva/ No frio da manhã/ Numa clareira da aldeia Tupy/ Entre mil pássaros só uma voz/ Uma voz, minha mãe/ Música doce/ Chamando meu nome/ Cauby!  Cauby! “. Lembrei-me também de “Bastidores” a canção de Chico Buarque, aquela do “Cantei, cantei/ Nem sei como eu cantava assim/ Cantei, cantei/ Jamais cantei tão lindo assim” – um de seus carros-chefe. E, claro, “eu me lembro muito bem”, e sempre, de “Conceição”, a música de Dunga e Jair Amorim por ele imortalizada.

   Em meu livro “Há Controvérsias 2” (Ed. Artepaubrasil, São Paulo, 2011), publiquei duas crônicas tendo como mote Cauby Peixoto, ou melhor, um dito ao acaso de minha irmã sobre ele. A tirada da Rosa acabou gerando os dois textos. Um deles, sobre pessoas que brilharam, que “arrasaram” em seu métier; outro, ao contrário, sobre o pessoal que “se ofuscou”, pisou na bola – literalmente aqueles que “desarrasaram”.  Na segunda-feira, 25 de abril de 2012, véspera do lançamento do livro em São Paulo, li que Cauby iria cantar no Bar Brahma, onde às vezes vou quando estou em Sampa, ali naquela esquina famosa da Ipiranga com a Avenida São João. Resolvi assistir ao show e aproveitar para levar um livro pro Cauby, afinal ele era um dos personagens do dito cujo. Mas Cauby acabou não aparecendo e quem fez o show foi Elza Soares – que, aliás, e como sempre, “arrasou”.
      Havia muito tempo que não o via, desde uma noite no Rio dos anos 1960 em que saímos de sua boate, o Drink, na Av. Princesa Isabel, e caminhamos – eu, Cauby e o baterista Afonso Vieira (que tocara com ele) madrugada afora até a porta de seu edifício no início da Rua Barata Ribeiro. Cauby morava nas proximidades de onde eu e Afonsinho nos “escondíamos”: no Edifício Richard, o famigerado “200”. Ele acabara de fazer magnífica performance, cantando standards do jazz numa jam-session no final da noite, e foi sobre isso que nós três ficamos conversando de pé ali, e noite adentro – Cole Porter, Gershwin e mais, muito mais – num tempo em que ainda se podia papear sem medo nas calçadas de Copacabana. Eu com o pescoço doendo de tanto olhar pra cima: o “professor” (como Cauby tratava as pessoas, qualquer pessoa) era alto, muito alto. De entortar qualquer pescoço.
Nunca mais o vi. Minto, passaram anos muitos anos quando num show do Marcos Valle naquela boate que ficava no subsolo do Hotel Méridien, depois que a Regine´s acabou (como era mesmo o nome? Acho que “Rio´s”, mas há controvérsias), percebi na mesa à minha frente, em meio ao lusco-fusco, o perfil da moça com muito chiquê, de longos cabelos ondulados, que tentei lembrar de onde conhecia. Súbito, ela se virou ligeiramente. Levei um susto: era o Cauby – ele que gostava de brocados, lamês & paetês e que sempre, dentro ou fora dos bastidores, “com muito brilho se vestiu”.  
  “Sim, eu me lembro muito bem” – assim começa uma das duas crônicas que escrevi sobre o Cauby. “O aniversário da Rosa estava acaba-não-acaba quando ela colocou para girar um disco com não sei quem cantando. Possivelmente a Elis, até hoje a preferida de minha irmã. A turminha começou a nomear seus cantores/cantoras preferidos, quando alguém tocou no nome do Cauby Peixoto. O pessoal caiu de pau no coitado do Cauby: ridículo, cafona, um repertório que vou te contar. Foi quando a Rosa mandou de lá: “É, pode ser, mas o Cauby arrasou na Conceição”.  Nunca vou me esquecer daquele “Arrasou na Conceição”, uma tradução mais que perfeita da grandeza de qualquer um, artista ou não, mesmo quando ataca da “Conceição”, aquela que “vivia no morro a sonhar com coisas que o morro não tem”.
A seguir, eu continuava elencando nas duas crônicas e por vários parágrafos uma série de “arrasos na Conceição”, de Ella Fitzgerald a Elis; de Cole Porter a Tom Jobim; de Jeanne Moreau a Giulieta Masina;  de Truffaut a Fellini; de Nara cantando Lindoneia a Gal cantando Lily Braun; do show de Caetano para Fellini, em Rimini, ao mesmo Caetano de Força Estranha e do álbum Transa; do Vinicius do poema O Haver ao Maiakóvski de A Plenos Pulmões; do Lance de Dados de Mallarmé ao Barco Bêbado de Rimbaud; do João Cabral de Duas Águas ao Drummond de Elegia 1938; do Ungaretti de Mattina ao Keats de “A thing of beaty is a joy forever”. E também de “desarrasos na Conceição”: J. Edgard Hoover, o chefão do FBI, dando uma total “desarrasada na Conceição” ao falar sobre John Lennon: “Não há espaço nos EUA para algumas almas tímidas que pregam a paz a qualquer preço, nem para aqueles que entoam os slogans ´antes comunista que morto´ (better red/ than dead). Precisamos de homens e mulheres com capacidade para a indignação, para defender a causa da democracia”.
Mais tarde Hoover foi rebatido por Gore Vidal: “(...) Lennon era um inimigo nato das pessoas que governavam os EUA na época. Ele era tudo que eles odiavam. Eu diria que ele representava a vida, o que é admirável. E Nixon e Bush (e Hoover, acrescento) representavam a morte. E isso sim, é uma droga”. Em 1976, com Nixon já defenestrado do poder, Lennon ganha a causa e recebe o Green Card. Perguntado se tinha algum ressentimento, John arrasou geral na Conceição: “Não, acredito que o tempo se encarrega dos patifes”. Poderia acrescentar, hoje, que os senadores Lindeberg Farias e Vanessa Grazziotin andam arrasando na Conceição, em descompasso com Cunha & Temer, um só e tenebroso “desarraso”.
Termino esses “recuerdos de la Concepción” reproduzindo o parágrafo final de minha primeira crônica sobre Cauby in “Há Controvérsias 2”: “Madrugada dos anos 60: Copa-Leme. Antes de chegar em casa – vindo não sei de onde, nem sei como –, entro prum último drink na boate do mesmo nome, dos irmãos Araken, Moacir e do não menos Cauby Peixoto, o próprio. Fim de noite, fim de show, derradeiros bêbados em mesas separadas, garçons sonolentos, lusco-fusco. No palco, alguns dos músicos que restaram abrem uma derradeira jam-session: meu caro amigo Afonsinho na bateria (sua bateria, aquela “Conceição” que ele arrasava sempre), o jazzista Moacir no piano. Cauby acabara seu show, onde Conceição naturalmente fora a estrela. Copo na mão, cigarro na outra, volta ao palco e entra no embalo do improviso. Ataca de Cole Porter, sempre ele, um formidável I´ve Gotta You Under My Skin. Aquilo inoculou em minhas veias uma inesquecível sensação. Nunca mais ouvi nada tão intenso. Ali foi quando, sem o saber, Cauby realmente “arrasou na Conceição”.



10 de mai. de 2016

Rosário Fusco:um espetáculo


Rosário Fusco de novo e sempre. Após publicar uma série de crônicas sobre a entrevista que eu e Joaquim Branco fizemos com o escritor, que saiu no Pasquim há quarenta anos, lembrei-me de um texto que escrevi também nos anos 1970 e de que Fusco gostava muito. Ele foi publicado em 1985 no livro “Marginais do Pomba”. Editado por Fernando Cesário, Joaquim Branco e por mim, “Marginais do Pomba” era uma antologia de textos de vários escritores cataguasenses, dos Verdes dos anos 1920 ao grupo da Revista Meia Pataca, anos 1940; daí ao pessoal do Totem, década de 1960, chegando aos então novíssimos dos anos 1980.
Como aqueles imponderáveis personagens do realismo fantástico (evoé, Fusco!), também o personagem do meu texto-entrevista (verdadeiro? fictício?) repetia sempre o seu bordão “eu sou um espetáculo”, como se vírgula fosse. A partir daí, Fusco não podia me ver sem bradar do alto dos seus metro e oitenta: “eu sou um espetáculo”. Era mesmo: não o meu personagem, mas o próprio Fusco. Meu texto vai a seguir, como mais uma homenagem ao meu espetacular amigo Rosário Fusco de Souza Guerra.


RINGO NÃO DISCUTE: MATA
 Três indivíduos armados com metralhadoras penetram em uma agência bancária no interior do Rio Grande Sul e rendem o gerente. Sorrateiramente, o guarda do banco saca seu 38 carga dupla e com o braço colocado às costas – no melhor estilo dos caubóis – liquida de uma só vez os assaltantes.
Assim Luiz Mendonça, 37 anos, solteiro, guarda bancário e fotógrafo amador, explica o cognome de Ringo. Onze mortes nas costas (“mas pela frente”), inclusive um goleiro do Coríntians (“eu era centroavante do Santos”), morto com potente tirambaço (“a pelota bateu na trave e acertou nas costas, bem nos rins: morreu na hora”).

Traído pelos coronéis
Ringo é do interior de Minas, filho de índia com espanhol (“mas eles gostam de ser brasileiros”). Foi tropeiro, carregou caminhões de terra, cortou bambu para fábrica de papel. “Meu passado é muito triste, sou um humilde, um humilhado. Mas sou um espetáculo”.
Aos 20 anos entra para a polícia em Belo Horizonte e acaba indo para o Rio Grande do Sul com o SEG (Serviço Especial de Guarda), “na captura de bandidos”. Pelo sim, pelo não, terminou expulso após longa temporada num Hospital Psiquiátrico. Dezessete vezes tratado a choques elétricos. “Fui traído pelos coronéis”.
Fotógrafo de polícia, fazia reportagens com Pio XII, “o Amaral Neto da época”. Aprendeu sozinho: “sou um burocrata formado, um autodidata fotográfico. Faço reportagens e os clientes não pagam. Mas não sou moleque: jamais bato flash sozinho para enganar a freguesia. Sou profissional honesto e positivo. Eu sou um espetáculo”.

Um espetáculo
Nove horas da noite num botequim do interior de Minas. Cabelo à francesa, literalmente penteado pra frente, camisa vermelha com bolotas brancas, terno de linho branco com bainha dupla, imensos óculos escuros cobrindo quase metade do rosto, máquina fotográfica a tiracolo, Ringo rides again.
Entre um chope e um conhaque, e outro, e outros, fala de sua ida à Europa, Oliúdi & adjacências, acompanhado o indefectível Pio XII, “um espetáculo, o maior repórter que já existiu”. Relembra um campo de nudismo que fotografou: “Uma pouca vergonha. Não ignorei a pátria deles (Oliúdi?), mas ela é porca. Não é como o Brasil, onde vivemos prazerosamente e a amizade é total. Aqui não existe covardia. Melhor do que o Brasil só Deus. Mas sou internacional”.

Sexual masculino
       Para de repente, leva um cigarro à boca, acende-o à maneira dos mocinhos de cinema, riscando o fósforo com uma só mão, e emenda de um jato, quase sem respirar: “Sou um infeliz no mundo. Mas sou muito honesto. Dou muita falta de sorte com as mulheres. Fui noivo, mas casamento não é pra agora, é pra hoje ou amanhã. Mulher é mulher: namorada dá dor no saco. Incha. As mulheres são comerciais de acordo com a frequência do sexo masculino”.
    Solta a fumaça, esvazia o corpo, estende o indicador e completa solenemente: “Mas eu frequento o feminino. Sou um sexual masculino. Sou um cara psicológico, um espetáculo”.
      A vitrola do botequim ataca de Roberto Carlos, mas Ringo rebate de sola: “Esse cara não é bom, bom mesmo é o Waldick Soriano. O Waldick é um grande patriota, como o Presidente João Figueiredo: amou, cresceu e lutou pelo Brasil. Já o Pelé é patriota em despedida. Jango, não sei, foi traído. Mas JK era um bom patriota, como o Getúlio, que foi um espetáculo, o dono do Brasil. Tudo que o Brasil faz é bom porque tem progressão. A democracia sou eu. Amo a terra em que vou morrer.”

Deixa comigo
    “Quando era menino, meu pai me deu uma chicotada por causa de um boi. Mamãe me protegeu. Papai me abandonou no mundo. Gosto muito da mamãe. É uma piranha, mas gosto dela: é mulher patriota, um espetáculo.
     “Meu revólver é silencioso e sou rápido como o Ringo. Puxo mesmo o gatilho. Mas me arrependo das mortes que fiz, é um horror a minha vida. Dormindo, as mortes me sobem pelas pernas, como minhocas. Sou mau, mas não faço maldade. Deus não deixa. As boas amizades é sempre a mim, entanto a maldade não existe entre ambos (põe aí – ambos: plural). Meu passado total é uma tristeza. Sou muito psicológico, eu sou um espetáculo.”
      Nessas alturas, já de porre, Ringo cisma que o dono do botequim está nos olhando de soslaio. Tira os óculos e diz, tão solene quanto lhe permite a voz pastosa: “Deixa comigo”. E dá de alisar a cintura. Percebo que o famigerado 38 esta sob o paletó. Realmente, uma loucura. Só a custo consigo retirar nosso herói do chamado recinto. Ringo some dentro das pradarias da meia-noite, o andar gingado, de caubói bêbado. Um espetáculo cambaleante e para sempre.