2 de jul. de 2012

O baterista Sabino nasceu homem e morreu menino


     “De tudo ficaram três coisas: a certeza de que ele estava sempre começando, a certeza de que era preciso continuar e a certeza de que seria interrompido antes de terminar” – escreveu ele sobre seu alterego Eduardo Marciano em O encontro marcado, seu seminal romance de formação. Noite após noite, encharcados de literatura, Eduardo e seus jovens amigos perambulavam pelas ruas de uma Belo Horizonte ainda da primeira metade do século passado, onde quase todos se conheciam.  E seguiam “puxando angústia” pelas ruas da cidade: “O efêmero da existência. Nada valia nada, tudo precário, equívoco, contraditório” (Hugo). “A incidência no tempo e no espaço: a inexorabilidade do fortuito na vida de cada um” (Mauro). “O tempo em face da eternidade. O futuro se converte a cada instante em passado. O presente não existe. Nascemos para morrer” (Eduardo).  E diziam em coro, devidamente irônicos: “Hoje nós estamos afiados para puxar uma angustiazinha”.

     Mas nem só de “puxar angústia” vivia Fernando Sabino, autor das mais saborosas histórias de nossa literatura, que preservou por toda a vida o menino de dentro de si: “Se algum dia eu cometer a indelicadeza de morrer, assim quereria meu epitáfio: ‘aqui jaz Fernando Sabino. Nasceu homem, morreu menino”. Esse mesmo bom-humor com que descrevia uma enevoada Londres, nos tempos em que lá foi Adido Cultural: “Londres ninguém nunca viu: se tem fog não se vê, e sem fog não é Londres”. Ou quando relembrava aquela “canção de espantar angústia” cantada no chuveiro, a cada manhã, por seu grande amigo Paulo Mendes Campos: “I like coffee, I like tea/ I like girls and girls like me”. E tome polca. Quer dizer, tome jazz – uma das predileções de Fernando, que chegou a declarar um dia: “A minha verdadeira vocação seria a de ser baterista de jazz. Eu sofro muito para escrever e me divirto muito com o jazz”.

     Escrever fácil é sempre mais difícil. É o que ele buscava à custa de muito sacrifício. “Eu fiz uma opção. Resolvi fazer da palavra escrita não um instrumento em si, e sim um veículo para transmitir ideias. Resolvi, entre duas maneiras de dizer, optar sempre pela mais simples. Com isso quero dar ao leitor a impressão de que ele não está lendo, ele está simplesmente pensando, está simplesmente sendo interpretado. E quanto menos o leitor pensa em palavras, mais eu atinjo o meu objetivo”. Enquanto isso, mãos nas baquetas – e tome jazz! E foi esse jazz por ele cultuado a motivação de nossos encontros não marcados.  

     Fernando e eu nos falamos algumas vezes por telefone e (des)aconteceram alguns “(des)encontros não marcados” – como quando me procurou na casa de meu pai em Cataguases, ou aquele nosso desencontro no escritório de Oscar Niemeyer, que já contei na crônica anterior. Pessoalmente, só nos vimos duas vezes, ambas no Rio. E ambas em função de seu assumido personagem “baterista de jazz”. A primeira vez, no lançamento de sua Obra Reunida, editada em três volumes pela Nova Aguilar. Foi no Mistura Fina, casa de shows na Lagoa Rodrigo de Freitas. Eu estava em uma mesa com nossos amigos Neti e Marcos Szpilman, ambos da Rio Jazz Orchestra, e Fernando sentou-se um tempo conosco (sempre que podia, dava canjas de bateria em apresentações da orquestra). Marcos nos apresentou, ele logo lembrou-se de mim e de Argel. Conversamos um pouco antes que ele subisse ao palco, chamado para assumir a bateria num dos sets do show de sua filha, a cantora Verônica Sabino. Depois, tempo de autógrafos. A casa estava cheia e não nos falamos mais aquela noite.  

     E foi também com o Fernando baterista com quem me encontrei, pela segunda e última vez, na boate Jazz Rio Show, no porão do Hotel Méridien, no Leme. Era noite de apresentação da Rio Jazz Orchestra e sua crooner, minha amiga Neti Szpilman, me colocou em uma mesa junto com Fernando e sua mulher, a belíssima Lygia Marina. Sim, a mesma “Lígia”, a (“anti”?) musa da canção de Jobim, aquela com letra “desencontrada” e alguns toques de Chico Buarque – que eu já conhecia, pois sempre a via em shows nas noites cariocas (era impossível não vê-la).  Na mesa, nós três mais minha filha Ulla, que não parou um minuto sentada. Mal a orquestra atacava de lá, Ulla atacava de cá, liberando passos inacreditáveis, numa dança toda sua, pouco se importando se era suave a canção, como aquele Storm Weather à la Fellini entoado pela Neti, ou se frenéticos os jazzísticos acordes Nigth and Day do sax do band leader Marcos Szpilman. 

      Encantados com os passos “ullescos”, Lygia e Fernando me perguntavam a todo momento de onde ela tirava aquela tipo de dança que nunca haviam visto. Nem eu sabia, nem a própria Ulla, pois era tudo de improviso, diga-se de passagem. Jazz é improviso, ou não? Eis que chega de improviso outro Fernando, também (e com a devida licença) “jazzista de escol” – o inesperado Luis Fernando Verissimo. Claro que (e agora com a indevida licença) “na calada da noite”. Sabino nos apresenta e o “caladão” Verissimo se limita a um “muito prazer”, diz que vinha de um outro show que não gostara muito, e volta sua atenção para o palco. Nada mais disse. Nem mesmo quando a orquestra iniciou os acordes de Ain´t Misbehavin´, de Fats Waller, não por acaso a canção preferida de Sabino. Chamado ao palco, Fernando assumiu a bateria da Rio Jazz e “sentou os paus” num inacreditável solo de uma felicidade só. Que não se interrompeu sequer ao escapulir uma das baquetas de suas mãos – imediatamente apanhada no ar como num ensaiado passe de mágica.

     Lygia atenta, Ulla dançando alheia a tudo. Sorri pro Veríssimo que, impassível, deitava seu enigmático olhar sobre os clarões do palco. Ali, onde Fernando soltava seu menino, ininterruptamente, sem sair sequer por um átimo do riscado do ritmo.  “Fazer da interrupção um caminho novo. Fazer da queda um passo de dança, do medo uma caçada, do sono uma ponte, da procura um encontro”. Nem parecia aquele Eduardo Marciano que puxava angústias do tipo “viver era fácil. Era só ainda ser e ter sido”. Ou “pior do que morrer é não ter nascido”. Pois foi esse mesmo Fernando Sabino que cometeu “a indelicadeza” de morrer no Rio de Janeiro em 11 de outubro de 2004. Era a véspera do aniversário do menino de 81 anos.